SEMPRE MÚSICA . . .

sexta-feira, 18 de julho de 2008

[] Aracy, A Dama da Central . . . [1914=1988]

É quase impossível imaginarmos uma Aracy de Almeida muito bem sentada numa casa de subúrbio ampla e tranqüila, ouvindo Mozart, Beethoven e se deliciando com cantores de Jazz e Canto Gregoriano.

Uma casa cheia de plantas e folhagens, e na sala, uma infinidade de quadros, gravuras e desenhos, com assinaturas bem conhecidas como Aldemir Martins, Di Cavalcanti e Cândido Portinari, que eram seus amigos de freqüentar a casa , com direito a cachaça, bolinhos de bacalhau e outras comilanças.

Na verdade, ela não era esse “bicho-papão” que a gente ficou conhecendo como jurada rabugenta que a mídia ajudou a perpetuar. Era uma amiga generosa, desapegada de bens materiais, carinhosa e com um temperamento muito franco e prático...

Era fã de carteirinha do Velho Testamento, sabia recitar versículos inteiros, comparando-os às cantatas de Bach.

Além disso, se interessava por psicanálise e dissertava com a maior desenvoltura sobre a obra de Freud e Lacan, sem falar que era uma profunda conhecedora da nossa farmacopéia. Mil faces tinha Aracy...


Uma adolescente carioca, chamada Hermogênea, de apenas 15 anos, se casa com um homem já entrado nos 30, Seu Baltazar que era chefe de trens na Central do Brasil.

Daí, nascem vários filhos, todos homens, com exceção de uma menina, para desgosto dos pais, que achavam que filha mulher dava muito trabalho para criar.

Araci Teles de Almeida, nasceu em 19/08/14 e sempre detestou o nome. Queria ser Maria, pois achava mais simples e mais bonito... foi por isso que mais tarde, quando já era dona do seu nariz, escrevia e assinava seu nome com “y”, que segundo ela, era “mais bacana”. Aí virou Aracy para sempre...

Nasceu no subúrbio carioca de Encantado, numa casa muito simples, de quarto e sala, onde todos dormiam em esteiras cuidadosamente arrumadas no chão.

Desde cedo Aracy deu trabalho, pois foi criada como menino, era briguenta, não levava desaforo pra casa, arrumava confusão na rua, foi expulsa de um colégio, e enfrentava no soco algum engraçadinho que atravessasse seu caminho.

Freqüentou o colégio até o segundo ano ginasial e foi colega do futuro radialista Alziro Zarur. Sim, ele mesmo, aquele que mais tarde ficaria famoso pela distribuição itinerante de sopa aos pobres pelas ruas do Rio de Janeiro.

Aracy desde cedo queria era sair de casa, ser independente, fazer o que queria...achava aquela vidinha caseira muito chata e logo fez um curso para aprender a confeccionar flores de papel e tecido engomado para ter algum dinheiro e assim, bancar suas saídas.

Cantava hinos religiosos na Igreja Batista, e escondida dos pais, também cantava em terreiros de macumba, quando não estava tocando cuíca num bloco carnavalesco.

Conhece o compositor Custódio Mesquita para quem canta “Bom Dia, Meu Amor” e através dele, ingressa na Rádio Educadora, que depois virou Rádio Tamoio. Estamos em 1933.

Nesta emissora, conhece o jovem Noel Rosa, e de cara, aceita o convite dele para tomar algumas cervejas na Taberna da Glória. A partir deste dia, ficaram amigos para sempre, com “cervejada” todas as noites.
E todas as madrugadas...

Foi realmente um encontro de grandes afinidades pois segundo ele, Aracy era quem mais captava a intenção dele ao compor uma música e por isso, acabou virando uma espécie de “musa inspiradora” apesar de muitos afirmarem que eles tiveram um romance.

Nada disso, eram muito amigos e companheiros de boemia, de bebedeiras, muitos cigarros, pandeiro, violão e peixe frito nos botequins do Rio de Janeiro, madrugada a dentro...

Em 1934 Aracy grava seu primeiro disco, que foi pela “Columbia”, com uma marchinha para o carnaval, chamada “Em Plena Folia”.

No ano seguinte Aracy começa a gravar e interpretar composições de Noel, iniciando-se uma parceria de toda a vida, com muita serenata, muitos clubes, tabernas, programas de rádio e barracões de escolas de samba.

Entre 1948 e 1952, ela vai trabalhar na boate carioca “VOGUE”, sempre privilegiando as composições de seu amigo inseparável e no ano de ’50, grava algumas músicas dele que ficaram para sempre na memória de quase todos nós:

“Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Com que Roupa”, “Palpite Infeliz”, “Último Desejo”, “Três Apitos” e “O Orvalho Vem Caindo”.

Em 1950 Aracy muda-se para São Paulo, onde mora durante doze anos, indo ao Rio esporadicamente para algum show, como o que fez na boate “ZUM ZUM”, ao lado de Sérgio Porto e Billy Blanco.

Em 1965, já de volta morando no Rio, faz alguns shows como “Conversa de Botequim”, dirigido pela dupla Miéli & Bôscoli, além se uma série de apresentações na boate “LE CLUB” .

Aracy era uma pessoa extremamente disciplinada e profissional. Chegava sempre com 1 hora de antecedência a seus compromissos musicais e verificava o microfone, a luz, a mesa de som e dava enormes broncas nos músicos que chegavam em cima da hora ou, pior, atrasados.

Como boa carioca, tinha lá suas manhas, além de ser uma cantora inteligente. Adaptava seu repertório de acordo com o seu tipo de público... ou seja, mudava o compasso.

Se estivesse cantando na Lapa, os sambas eram mais ritmados, mas se fosse em Copacabana, numa boate de gente mais endinheirada, ela cantava a mesma música da Lapa, de uma maneira mais pro lado do bolero, mais lento e mais dolente, com um andamento mais envolvente.

Mas tudo isso sem perder suas características marcantes de intérprete que a tornaram uma artista singular.

Participou como jurada em diversos programas de TV, entre eles o “Programa do Bolinha”, “A Buzina do Chacrinha” e o “Programa Silvio Santos”, onde invariavelmente dava nota baixa aos candidatos e até tirava partido da fama de mal humorada e grosseira que a televisão mais o seu jeito sem papas na língua ajudaram a construir.

Segundo seus amigos e pessoas que conviveram com ela, Aracy na verdade era uma mulher brincalhona e amiga sincera.

Quando morava em São Paulo, sua casa era um hotel de onde quase nunca saia, a não ser para visitar alguns amigos judeus, pois freqüentava a comunidade judaica e estava interessada nos preceitos sociais e religiosos deste povo.

No Rio de Janeiro, pagava sanduíches e bebidas para as prostitutas da Central do Brasil, cumprimentava a todas, falava com os mendigos e com os moleques que circulavam pelas imediações.

Aracy era adorada por marginais de diversas margens...

Grande amiga do poeta, compositor, escritor e jornalista Antônio Maria [1921-1964], foi ele quem ensinou para Aracy os princípios do Existencialismo. Aracy cuidou dele durante sua doença até a morte em 1964.

Desapegada de bens materiais, não ligava muito para dinheiro, que usava solto dentro da bolsa pois não usava carteira. Certa vez Silvio Caldas precisava de dinheiro; Aracy deu pra ele então um quadro de Di Cavalcanti para que fosse vendido.

Sua casa sempre tinha lugar para os amigos ou para algum colega sem trabalho e sem dinheiro. Ela sempre dava um jeito... Cansou de viajar e desgostosa com as rumos que na época a indústria do disco estava tomando, gravou seu último disco em 1965.

Em 1988 teve um edema pulmonar e ficou hospitalizada, com o suporte financeiro de seu amigo Silvio Santos que a adorava. Foi transferida para ser internada no Rio de Janeiro, Silvio ligava religiosamente todos os dias às 18 horas para saber como ela estava.

Passou 2 meses em coma, teve apenas 2 dias de lucidez, mas sua pressão teve um aumento muito severo e em 20 de junho de 1988, Aracy de Almeida, com “y”, que ela achava “mais bacana”, estava morta.

Seu corpo foi velado no Teatro João Caetano tendo recebido a visitação de várias gerações de amigos e admiradores.

Um carro do corpo de bombeiros fez uma turnê pela cidade do Rio de Janeiro, com o caixão de Aracy, passando por todos os lugares mais freqüentados por ela: Glória, Lapa, Copacabana, Vila Isabel, Méier e Encantado.

Este último, lugar onde nasceu e foi criada, e mais tarde já adulta e famosa, comprou uma casa por lá, ganhando o título de “A Dama do Encantado”, para rivalizar com outro título consagrado, que já possuía bem antes, “A Dama da Central”.

Negra, Judia e Existencialista, podemos considerar Aracy como a mais perfeita tradução do Anarquismo...


[@] Veja Aracy em trecho de entrevista clicando aqui!! []




Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito de saber sobre Aracy que de todo não conhecia, muito obrigado, fiquei mais rica! Tenho vários discos de música brasileira dos mais conhecidos, comprei em Barcelona um cd Beach Samba do qual gosto muito pois tem músicas menos conhecidas. Ora sárábá para quem é de sárábá e benção para quem é de benção! Xi-coração da Ana